sábado, 13 de dezembro de 2008

A última história de Kakâmala, O Nômade

Um passarinho bica um pedaço preto do chão. Não se interessa e volta a zanzar. Estou sentado no pátio onde desembarcam os viajantes, alimentando o Sanguinário, cãozinho que vive por aqui. Me levanto para ver o que o passarinho bicou. Um cadáver de bezouro (pensou eu à primeira vista), mas logo constato ser um semi-cadáver já que ainda mexem algumas perninhas.
Chegam os Degoladores de Kamussa, farreiros, da caravana. Passam cantando hinos de Kamussa e degolando por prazer. Degolam, degolam e degolam com seus hinos estranhos. O pátio já é uma festa escarlate de cabeças pelo chão.
Andam em quatro. Um deles tem o cabelo tão longo que bate nos joelhos e tão sujo que nem mosquitos chegam perto. Vestem coletes de couro esfarrapados, botas de sola metálica e ainda diversas roupas que pegam dos decapitados que vão deixando por onde passam. Eles dançam e bebem e brincam com as cabeças. Fazem teatro de fantoches, cada um com uma. Outro usa uma cabeça como bola para jogar Trenas (um jogo de bola antigo).
O chefe deles bebe um líquido verde (absinto, presumo) e vem em minha direção (só havia sobrado eu alí). Eu, que nunca tive medo da morte nem de bicho nenhum, continuo tranquilamente o que estava fazendo. Ele se aproxima com seus (poucos) dentes podres e seu bafo de enxofre.
-Ô verme de lacraia, não vais correr por sua cabeça? - diz ele numa voz que lembra um resmungo primitivo.
-Estou alimentando o cachorro - respondo em uma calma que espanta até a mim mesmo.
-Pois o cão nos seria uma boa seia - diz ele com um sorriso verde - passa o pulguento pra cá! - ordena.
Me levanto, olhando nos seus olhos (de vidro) e digo:
-Este cão é mais digno que os quatro senhores juntos - Ele se espanta e até me cumprimenta pela coragem e ousadia de insultá-los mas sim, sou degolado.

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